Errar faz parte do processo de aprender. Embora o erro seja frequentemente visto como algo a ser evitado, pesquisas em psicologia e educação apontam que ele pode ser uma poderosa ferramenta de desenvolvimento cognitivo e emocional, especialmente na infância. O equívoco, quando acolhido com intencionalidade pedagógica, pode se transformar em um catalisador de descobertas, reflexões e adaptações.
No campo da computação, há um termo que descreve bem esse processo: debugar. Debugar significa identificar, compreender e corrigir falhas em um sistema. Quando um código não funciona como esperado, o programador analisa o que deu errado, testa novas possibilidades e adapta sua estratégia até encontrar uma solução. Esse ciclo de tentativa, erro e ajuste está no cerne do raciocínio lógico e da aprendizagem baseada em projetos.
Analogamente, a infância é um momento de intensas experiências de “debug”. A criança testa hipóteses constantemente — seja ao empilhar blocos, montar um brinquedo ou interagir socialmente. Ao errar, ela tem a chance de revisar suas ações, compreender causas e consequências e, pouco a pouco, construir soluções mais eficazes.
Pesquisadores como Jean Piaget e Lev Vygotsky ressaltaram que o aprendizado se dá em espiral, por meio da assimilação e da acomodação de novas informações. Seymour Papert, por sua vez, ao propor a construção do conhecimento por meio da experimentação e da tecnologia, destacou que o erro não é um obstáculo, mas uma oportunidade de aprofundamento.
Discutir o papel do erro como parte ativa da aprendizagem é, portanto, fundamental para a formação de indivíduos mais resilientes, criativos e capazes de solucionar problemas. Especialmente em uma sociedade que valoriza respostas prontas e produtividade, repensar o erro como etapa necessária da jornada educativa é um passo importante para construir ambientes de ensino mais acolhedores e transformadores.
O que é ‘debug’ e como se relaciona com o pensamento infantil
O termo “debug” vem da computação e significa literalmente “remover bugs” — ou seja, identificar e corrigir erros que impedem um sistema de funcionar corretamente. Trata-se de um processo ativo de observação, análise, formulação de hipóteses e testes para encontrar soluções eficazes. Embora esse conceito esteja diretamente ligado à programação, ele também se aplica de forma simbólica a diversas experiências humanas, inclusive ao modo como as crianças aprendem e interagem com o mundo.
Desde muito cedo, as crianças demonstram comportamentos semelhantes ao processo de debugar. Quando um brinquedo não funciona como o esperado, quando um objeto cai repetidamente ou quando uma tentativa de encaixe não dá certo, elas entram espontaneamente em ciclos de tentativa e erro. Essa prática não é apenas uma forma de brincar: é uma estratégia de construção de conhecimento baseada na experimentação.
Autores como Jerome Bruner e Jean Piaget apontam que a aprendizagem infantil ocorre, em grande parte, por meio da ação e da manipulação concreta. Ao explorar o ambiente, a criança formula hipóteses simples (“Se eu empurrar isso, ele vai cair”) e testa suas previsões na prática. Quando o resultado não corresponde à expectativa, ela reorganiza seu pensamento, ajusta sua ação e tenta novamente. Este processo é, essencialmente, um “debug” cognitivo — uma depuração de ideias que favorece a construção ativa de significados.
Brincadeiras com blocos de montar, jogos de raciocínio, experimentos simples e até interações sociais complexas envolvem essa mesma lógica de observação, erro, reavaliação e tentativa. A diferença é que, na infância, tudo isso acontece de maneira orgânica, sem a rigidez dos processos formais.
Compreender o “debug” como algo presente e valioso no pensamento infantil é essencial para respeitar o tempo da criança, estimular sua autonomia e promover uma aprendizagem mais significativa. Ao invés de punir o erro, o adulto pode assumir o papel de mediador, oferecendo suporte para que a criança descubra — por si mesma — onde está o “bug” e como pode corrigi-lo.
A importância do erro no processo de aprendizagem
Errar é, muitas vezes, a porta de entrada para aprender algo novo. No desenvolvimento infantil, o erro não deve ser encarado como falha, mas como parte natural — e necessária — do caminho para a compreensão. Diferentes teóricos da educação e da psicologia do desenvolvimento destacaram a importância dessa etapa no processo de aprendizagem significativa.
Jean Piaget, ao estudar a construção do conhecimento nas crianças, observou que os erros são indicadores de estágios do desenvolvimento cognitivo. Para Piaget, a criança aprende por meio da assimilação (integração de novas informações aos esquemas já existentes) e da acomodação (modificação dos esquemas diante de novas experiências). O erro, nesse contexto, surge como sinal de conflito cognitivo — uma oportunidade para reorganizar o pensamento e avançar no raciocínio.
Lev Vygotsky complementa essa visão ao afirmar que o aprendizado ocorre na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) — o espaço entre o que a criança já consegue fazer sozinha e o que pode realizar com ajuda. Ao enfrentar desafios e cometer erros sob orientação, a criança amplia suas competências e constrói novos saberes. O erro, mediado pelo adulto ou por pares mais experientes, torna-se um ponto de partida para o diálogo, a reflexão e o aprimoramento.
Já Seymour Papert, criador do termo “construcionismo”, defende que o conhecimento é melhor construído quando o aprendiz está envolvido na criação de algo significativo para si. Em seus estudos com crianças programando computadores por meio da linguagem LOGO, Papert destacou que errar e corrigir fazem parte do processo criativo. O ato de “debugar” não era visto como um problema, mas como uma oportunidade para pensar melhor — com mais profundidade e intenção.
Apesar disso, a forma como os erros são recebidos no ambiente educacional ou familiar pode impactar significativamente o desenvolvimento da criança. Quando o erro é punido, ridicularizado ou tratado como sinal de incompetência, instala-se o medo de errar, o que pode bloquear a criatividade, a curiosidade e a iniciativa. Crianças que crescem com receio de se equivocar tendem a evitar desafios e a depender de respostas prontas, limitando o próprio potencial de aprendizagem.
Portanto, acolher o erro com empatia e transformá-lo em ponto de partida para a construção do conhecimento é essencial. Ambientes educativos que valorizam a exploração, a experimentação e a revisão constante favorecem não apenas o desenvolvimento intelectual, mas também a formação de indivíduos mais confiantes, resilientes e autônomos.
Desenvolvendo o pensamento computacional desde cedo
O pensamento computacional é uma habilidade cada vez mais valorizada na educação do século XXI. Mais do que aprender a programar, trata-se de desenvolver formas de pensar logicamente, resolver problemas de maneira estruturada e criar soluções por meio da decomposição e da experimentação. O termo foi popularizado por Jeannette Wing, que o descreve como uma abordagem mental para resolver problemas que pode ser aplicada em qualquer área do conhecimento.
Desde cedo, as crianças podem ser introduzidas ao pensamento computacional por meio de atividades práticas que estimulam a curiosidade e o raciocínio lógico. Brinquedos de montar, jogos de estratégia, quebra-cabeças, robótica educacional e plataformas de programação com blocos visuais, como o Scratch, são excelentes ferramentas para isso. Ao lidar com esses desafios, a criança aprende a dividir problemas em partes menores, testar hipóteses e ajustar suas estratégias quando algo não funciona — exatamente como no processo de debug.
Por exemplo, ao programar um personagem no Scratch para se mover e falar, a criança pode se deparar com o fato de que a animação não acontece como esperado. Em vez de ver isso como um fracasso, ela é encorajada a verificar passo a passo o que pode estar impedindo o sucesso: será que a ordem dos comandos está errada? Será que faltou um bloco de repetição ou uma condição lógica? Esse tipo de análise, típica do “debug”, estimula habilidades cognitivas avançadas como atenção, memória de trabalho e flexibilidade mental.
Outro exemplo prático pode ser observado em oficinas de robótica, em que os alunos montam e programam robôs para realizar tarefas simples. Quando o robô não se move corretamente, é preciso revisar a montagem, checar conexões, testar sensores e ajustar os comandos. Nesse processo, o erro deixa de ser motivo de frustração e passa a ser entendido como parte natural da jornada de descoberta. A criança aprende, com isso, a persistir, revisar estratégias e compreender que o fracasso momentâneo é parte do caminho para a solução.
Além do ganho técnico, o pensamento computacional favorece o desenvolvimento da autonomia e da autorregulação emocional. Quando desafiadas por problemas abertos, as crianças constroem confiança em sua capacidade de pensar, experimentar e refinar ideias. Isso é fundamental para formar indivíduos que sabem lidar com incertezas e tomar decisões conscientes em contextos diversos — dentro e fora do universo digital.
Estratégias para pais e educadores estimularem o ‘debug’ construtivo
Para que o erro seja, de fato, compreendido como parte essencial do processo de aprendizagem, é fundamental que pais e educadores adotem práticas que acolham o “debug” como uma atitude construtiva e cotidiana. Isso implica, antes de tudo, em criar ambientes seguros, nos quais a criança sinta liberdade para experimentar, errar e tentar novamente, sem medo de punição ou julgamento.
Incentivar a curiosidade e a perseverança
A curiosidade é o ponto de partida do pensamento crítico. Crianças naturalmente curiosas tendem a investigar, questionar e buscar respostas — exatamente o que o processo de “debug” exige. Para manter essa disposição ativa, o adulto pode incentivar perguntas, valorizar explorações e mostrar interesse pelas descobertas da criança, mesmo quando os resultados não saem como esperado.
A perseverança, por sua vez, é cultivada ao longo do tempo. Quando a criança se frustra diante de um erro, é essencial que o adulto reconheça o esforço envolvido e a estimule a continuar tentando. Isso fortalece a chamada mentalidade de crescimento, conceito desenvolvido por Carol Dweck, que se refere à crença de que habilidades podem ser desenvolvidas por meio da dedicação e do esforço.
Criar um ambiente que acolha o erro como parte do processo
Um espaço educativo que valoriza o “debug” como ferramenta de aprendizagem deve oferecer tempo, materiais e apoio emocional para que a criança possa explorar possibilidades. Isso pode acontecer em casa, na escola ou em ambientes não formais de aprendizagem, como clubes de ciências ou oficinas de robótica. O importante é que a criança perceba que errar não a torna menos capaz, mas mais preparada para encontrar novos caminhos.
Evitar respostas prontas e permitir que a criança formule suas próprias hipóteses são atitudes que promovem autonomia. Em vez de corrigir imediatamente, o adulto pode perguntar: “O que você acha que aconteceu aqui?” ou “Se fizermos de outro jeito, o que pode acontecer?”
Usar linguagem que reforça a aprendizagem como processo
A forma como o adulto se comunica com a criança tem grande impacto sobre como ela enxerga o próprio desempenho. Frases como:
- “Ainda não conseguimos… vamos tentar outra forma?”
- “Esse erro nos mostrou algo importante. O que podemos aprender com ele?”
- “Você teve uma ótima ideia ao tentar isso. Que outro jeito podemos testar agora?”
… ajudam a criança a perceber que não existe um único caminho certo, e que o valor está no percurso — e não apenas na resposta final.
Essas estratégias tornam o ambiente educativo mais acolhedor, favorecem o desenvolvimento da autorreflexão e ajudam a construir uma relação mais saudável com o erro. Ao tratar o “debug” como uma prática cotidiana, contribuímos para formar indivíduos mais criativos, críticos e emocionalmente preparados para os desafios da vida.
Depoimentos e experiências reais: quando o erro se torna aprendizado
As ideias apresentadas ao longo deste artigo ganham ainda mais força quando observamos como se concretizam na prática. Oficinas de robótica, clubes de programação, salas de aula ativas e até espaços de aprendizagem em casa têm mostrado que, ao incentivar o erro como etapa do processo, é possível transformar a relação das crianças com o conhecimento, com o esforço e com a frustração.
Oficina de Robótica – Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF)
Durante uma atividade em grupo, crianças de 9 e 10 anos foram desafiadas a construir um robô que desviasse de obstáculos usando sensores. Na primeira tentativa, o robô travava ao encontrar uma parede. Ao invés de dar a resposta pronta, a educadora perguntou: “O que acham que pode estar acontecendo?”.
As crianças passaram a discutir, testar e observar em pares, até que identificaram que a programação dos sensores estava invertida. Ao fim do processo, um dos alunos comentou: “A gente aprendeu mais quando deu errado do que se tivesse dado certo de cara”. Esse tipo de comentário é comum em contextos que valorizam a experimentação e o aprender fazendo, conforme propôs Seymour Papert em suas pesquisas sobre aprendizagem significativa.
Relato de mãe – Atividades em casa com jogos de lógica
Camila, mãe de duas crianças que estudam em casa, relatou:
“Quando começamos a usar jogos de lógica e programação com blocos, percebi que meus filhos ficavam frustrados com facilidade. Mas aos poucos, fomos criando um combinado: errar faz parte do jogo. Agora, eles mesmos dizem ‘vamos tentar de outro jeito’ sem que eu precise intervir. Isso mudou completamente o nosso clima nas atividades em casa.”
Comentário de educadora – Ensino Fundamental I
Isabel, professora de turmas iniciais, afirma:
“Antes eu corrigia os erros imediatamente. Com o tempo, entendi que o erro pode ser um recurso pedagógico. Hoje, uso perguntas investigativas, e percebo que meus alunos se sentem mais confiantes para arriscar, propor ideias e aprender com o grupo. Eles se tornaram mais colaborativos e menos preocupados em ‘acertar de primeira’.”
Esses relatos evidenciam que, ao mudar a forma como tratamos o erro, mudamos também a experiência de aprender. O “debug” deixa de ser apenas uma ferramenta técnica da programação e passa a representar uma postura diante da vida: observar, compreender, corrigir e tentar novamente.
Errar não é o oposto de aprender — é parte integrante do processo. Quando entendemos que o erro representa uma oportunidade de repensar, ajustar e evoluir, abrimos espaço para uma aprendizagem mais significativa, resiliente e autêntica. No contexto infantil, essa compreensão é ainda mais essencial. Crianças em processo de desenvolvimento estão constantemente explorando, testando limites e formulando hipóteses sobre o mundo. Errar faz parte da trajetória de construção do conhecimento.
Ao longo deste artigo, vimos que o conceito de debug, originado na computação, oferece uma metáfora poderosa para a vida. Debugar é identificar falhas, compreender causas e buscar novas soluções — habilidades fundamentais para qualquer aprendiz. Estimular essa postura desde cedo ajuda a formar indivíduos mais críticos, criativos e emocionalmente preparados para lidar com os desafios que surgem ao longo da vida.
Como adultos, temos um papel crucial nesse processo. Podemos escolher entre reforçar o medo do erro ou promover uma cultura em que ele seja acolhido com curiosidade, empatia e intencionalidade educativa. Cada vez que uma criança erra, temos a chance de mostrar a ela que falhar não a define, mas pode impulsioná-la a encontrar caminhos ainda melhores.
E você? Como tem tratado os erros das crianças ao seu redor?
Está oferecendo espaço para que elas aprendam a “debugar” seus próprios caminhos? Que possamos cultivar, juntos, ambientes em que errar seja não motivo de vergonha, mas parte natural da jornada de crescer, aprender e se transformar.
A aprendizagem baseada no erro é uma ferramenta poderosa — e você pode aplicá-la no dia a dia de forma simples e eficaz.
💬 Compartilhe nos comentários uma situação real em que uma criança aprendeu mais ao errar do que ao acertar de primeira. Seu relato pode inspirar outros educadores e famílias a repensarem a forma como encaram o erro.
Vamos juntos construir ambientes onde errar seja parte do caminho para crescer.